sábado, 3 de dezembro de 2016

Um homem: o caos no fim da rua

Claude Benuto mora na casa de madeira no fim da rua. Depois dele só existe o mato e o medo.
Cercada de arbustos descoordenados, folhas secas e restos de tudo, seu canto provoca pavor e uma sensação de conforto. Ele não se importa com o que dizem dele. Desde quando está sozinho cuida de cada detalhe para que o pequeno universo de caos onde vive seja o espelho do que ele é. Se está uma bagunça por dentro por que ajeitar tudo por fora?


Ás vezes, Claude deixa sua casa e caminha pela cidade, vai até a venda de Morfort e se tem gente demais esperando pra comprar vai para detrás do balcão e começa a atender. Morfort não se importa, Claude faz isso desde muito tempo, e ele não se importa. Quando a fila acaba, ele pega uma peça de carne, dois pães e alguns saquinhos de tempero. Deixa o dinheiro sobre a mesa, murmura alguma despedida inaudível e sai.


Todos os dias Claude vai até a casa do falecido Dooney e alimenta seu cachorro Wally. Ele já tentou levar o cão duas vezes para sua casa, mas basta madrugar para o bicho ir embora de volta para sua surrada casinha de madeira no quintal abandonado. Ele respeita o animal, todos tem o seu lugar.
Claude Benuto gosta de viver onde vive, ele está no seu lugar. Os mais jovens anseiam deixar a vila, ir para a cidade grande. Ele não os culpa. Dentro dele quase sempre está uma bagunça como um centro movimentado da capital, e deve ser por isso que ele precisa ser o caos dentro de um lugar tranquilo.
No fim da rua, Claude Benuto se equilibra.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Três anos da minha reexistência

Não faltava nenhum peça, alguém diria.
Mas estava completamente incompleto.

Aos vinte de oito dias de junho do ano de dois mil e treze eu deixei de ser alguém para ser pai, condição essa que nunca mais deixara de ser condição.

Não dependo mais da vida, mas agora dependem do que faço e vivo. Sou parte complementar e essencial de um indivíduo que nesse momento e desde sempre, não existe sem mim.

Faço parte do privilegiado clube dos que cumpriram com sua maior e mais importante tarefa para com o mundo: aqueles que trouxeram à vida novos homens.

Um adendo polêmico: não existe maior egoísmo que possa vir de um ser humano nascido e saudável do que optar por não gerar filhos, criar filhos e constituir família. Todos (ou quase todos) nasceram assim, deram um trabalho monumental, cansaram seus pais mentalmente e fisicamente para que você pudesse crescer e escolher não fazer a sua parte. Tens a liberdade para tal? Sim, tens. Mas é errado, ruim, péssimo para a conservação da espécie, da vida, das relações e principalmente para com nosso dever com Deus, responsável por nossa existência e privilégio de viver.
Somos feitos para gerar pessoas, a continuidade do homem. Ninguém é bom demais para perder tempo sendo pai ou mãe. Alguém "perdeu tempo" com você e é confortável demais optar não ter filhos como se decidisse não jantar ou não se mudar de cidade. Enfim, cada um tem sua vida e pode cometer seus erros.



Não há um minuto em que eu esteja acordado e tranquilo, plenamente, completamente. A mente me leva a onde estão os nossos, o que fazem, se estão em segurança.
E não há ansiedade melhor.

Não somos absolutamente nada, dizem. Posso concordar, mas quando somos pais conseguimos ser um pouco alguma coisa. Deixamos de acreditar que somos tão importantes e que somos especiais, para perceber que o que vale mesmo é o que plantamos e colhemos. Isso sim é tudo e nos tira do nada.

Hoje fazem três anos que deixei de ser quase nada para ser parte da história do mundo. A maior marca que um homem pode deixar aqui não são mortos em um genocídio nem uma teoria econômica, mas outra vida para fazer, viver, existir.

Agradeço a Deus por tal chance, hoje, multiplicada por dois.
E agradeço pelo Filipe. Meu amor, príncipe do meu império de valores, alicerce das minhas vontades e razão para eu ser quem sou.

Família é tudo, vivo por ela, acordo por ela.
Filipe, parte mais doce do começo, motivo da minha reconstrução diária, filho meu.
Rei...
Coração...
:D

domingo, 26 de junho de 2016

Monólogo do velho de férias

São as férias, por favor. Me ajude. Droga, a câmera caiu e eu espero que não tenha quebrado nada pois eu paguei bem caro por essa coisa.
Sim, sim, podemos ir depois até aquela sorveteria, mas agora vamos tirar aquela foto. Desça as escadas, mas vá devagar, choveu esta manhã.
Veja se não está molhado e sente-se aí. Olhe aqui pra cima. Tente não olhar direto para o sol então, oras, mas por Deus nem tem sol direito ainda.
Quer fazer alguma pose diferente? Eu não sei, o que você quiser, ninguém vai reparar em você mesmo com um chafariz desse tamanho logo atrás então pare de se preocupar.
Estão ficando boas, então vamos. Ah, ok, se quer uma de pé tudo bem, olhe para cá. Sempre no ponto vermelho.
Vamos, vamos.

Já tem um tempo que não tomo sorvete, sabia? Meus dentes doem como o diabo, prefiro ficar no café mesmo.
Quer revelar as fotos agora ou depois?
Mas o que tem de tão importante assim naquele lugar? Tudo bem, vamos ver esse tal museu.
Eu realmente não entendo o que pode haver de tão interessante aqui para o infeliz da portaria me cobrar 6 moedas, mas vamos, suba logo essas escadas velhas.
Jesus, essa coisa deve ter um milhão de anos. Como ainda não virou poeira? Está vendo quando digo que as coisas hoje são feitas para não durar, eu não disse? Falei para sua mãe quando quis comprar aquela secadora nova cheia de funções e botões que soam como zeros no meu cheque.
Venha ver isso, estes jornais. Veja o tamanho desses artigos, Jesus. E parecem ser interessantes. Ontem eu comprei um jornal em que a melhor parte dele era uma terceira colocada de algum concurso de canto que estava de biquíni e provavelmente tinha traído o namorado, que curiosamente foi o segundo colocado da mesma droga de concurso.
Já olhou pela janela? Está ficando escuro lá fora, pegue sua capa e vamos dar o fora daqui.

Acha que conseguimos um táxi aqui nesse buraco?
Pra mim, só um espresso médio, e certifique de que venha com aquele cookie que acaba em uma mordida. Se vão me roubar que me roubem direito.
Como você consegue beber algo que tenha mais de 3 ingredientes? Que cheiro é esse, isso é álcool? Meu Deus, não poupam nem uma cafeteria mais.
Você ficaria chateada se eu fosse ver o final da partida ali na tv? Sei que não, pois não precisaria conversar comigo e pode mexer a vontade no seu celular.
É incrível a minha capacidade de ver os finais das partidas e meu time levar gols. Quando será que eu peguei isso?

Tome a chave do seu quarto, querida. Foi tão aborrecido quanto pensou que seria?
Oh, sei que só diz isso pra fazer seu velho avô se sentir bem.
Vá dormir, ou ficar com a cara enfiada no celular, faça o que quiser. Eu vou ler e ligar para sua vó e tentar me lembrar de esquecer que você bebeu um café com aquela coisa hoje.
Durma bem, querida.
Amanhã vamos caminhar mais, conhecer mais cantos por aí, e me lembre de comprar uma capa nova, a minha já não me protege nem da neblina.
E quanta neblina. Quanta.

sábado, 25 de julho de 2015

Arrá!

Tal como as borboletas os humanos sonharam com as asas, que lhes permitiriam tanto, e tanto. Descer as ruas do céu para o chão, esquerda, direita, esquerda, descendo e mirando janelas, luzes acesas. Tantas janelas, tantos olhos na noite escura. Um simples esforço contra a brisa e ganhamos a direção, sentido.
Imagine-se um ser invisível, feliz, sem nenhum escrúpulo ou vergonha. Passeia, corre, imita Chaplin em toda esquina, canta na chuva debaixo do sol. Grite Arrá! por todos os cantos, sereno e incalculável. Ninguém sabe onde você está e nem pra onde vai. Entre em bares, sente-se em bancos vazios que continuarão vazios, peça uma bebida que não virá. Chame uma bela moça de um nome feio, e peça desculpas depois pela ofensa que ela nunca soube.
Então finja-se de borboleta agora e suba sobre os carros, caia no chão como uma ginasta, pés juntos e sincronizados, espere os aplausos, feche os olhos, escute os aplausos e agradeça a ninguém. Saia correndo na faixa central da pista. Imite seus personagens favoritos dos desenhos animados. Faça uma folia que nem o cego verá.
Não tente descobrir agora se está sonhando, vivendo ou amando. É dispensável conhecer tudo. Arrepie-se de frio e de calor. Faça isso até ficar exausto e pare. Olhe para tudo que lhe contorna e sorria, continue fazendo o Arrá! sem parar, não se deve parar.
Vá até a próxima praça e mergulhe sem se molhar no chafariz. Finja bater na água com as palmas das mãos, abrace a estátua, aposte corrida contra um idoso lento, urine nas roupas, encontre toda a loucura que fica perdida e guardada em uma gaveta que nunca se abre. Seja a imagem do que você jamais seria. Sempre nos sonhos, viva. Não se pode fugir da natureza, nem da de Deus nem da sua. Você pode até correr, mas sem tropeçar em cravos que vão lhe machucar e ativar a chave da realidade que você ama, finge subverter, quer sair e voltar, sonhar loucuras, mas jamais esquecer.

domingo, 1 de março de 2015

Páginas úmidas

As botas cheias de água fazem barulho engraçado. Vai pegar gripe, avisaram. Dane-se, na mente respondeu. E agradeceu.
Os calos ainda doem mas fazem parte do que é. Mancar se tornou exercício diário, sem esse medíocre costume o mundo pareceria igual a antes.
O livro debaixo do braço está molhado, não todo, claro, as pontas e algumas páginas salpicadas de pingos de chuva e café derramado.
O caminho para a gráfica é nauseante demais para andar olhando para frente, encarando as faces tão isoladas e únicas dos caminhantes. Dobra então o pescoço e se desvia de buracos e galhos. Das poças já não se dá o trabalho.
Adora barulho de pratos, daqueles agudos, batidos e rebatidos, colocados um acima do outro, sujos, limpos, ensaboados. Não se importa com uma marca de batom ou café seco na sua xícara. Acha até que ninguém deveria se importar.
A professora do lado perguntou se ele não se importa em molhar o livro. Ele responde que não gosta, mas não tem escolha. Se ele precisa ler, ele precisa. É como respirar. Um caminhão sem filtros que passa pintando a rua de preto não vai impedí-lo de puxar o ar. Está acima dele, do que tem direito a escolher. As páginas molham e podem secar. A vontade que marcha junto ao sangue pode lhe matar, ou ao menos ele acredita nisso.
Do que adianta se desviar do que é no amanhecer do dia se você não passa do que é?
Melhor um livro de páginas ruídas do que novo feito vinho ruim.
Melhor um homem que se molha e se estraga do que um limpo, uma página em branco sem nada para contar.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Que tem o tempo a ver com meu tempo

Invernos que queremos. Frio. A chuva que cai e nos deixa mais transparentes. Não quero mais ser talhado pela felicidade dos dias limpos, da imposição do sorriso franco de um dia que remete a praia.

Do oceano só desejo a distância de tudo.
E seu azul que contrasta com o cinza interior.

Não podemos escolher como amanhece o céu. Vivemos o que a roleta do tempo disser. Reservas de agonias para o sol que aquece a desagradável corrente das monções. Esperamos o gelar de nossos instintos para que nos aproximemos do que somos.

Do sol aprecio os reflexos em janelas semicerradas. Raios que escapam à escuridão e formam linhas tontas em paredes brancas.

E esta é a razão de termos ambos. Sofrimento total é opção. Agruras sazonais são compulsórias. Somos escravos do tempo, e nossa emoção também.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Atravessando a rua em um dia frio e sem luz





Como em um sonho

Se agarre ao que puder. Braços, cabelos.
Então atravesse a rua, cuidado com os faróis.

Se for lento, terá de correr
Então corra
Caia na neve se precisar, você não irá se machucar

Agora basta se sentar na calçada, se proteja do vento forte
Saiu só com esta blusa?
Agora vai congelar.

Não se esqueça de encostar no muro da casa verde.
Você não vai querer ser atropelado por cães de rua

Espere a tarde terminar e faça o que quiser
Fim das instruções.