domingo, 29 de setembro de 2013

O conforto do meu lugar

Já vem chegando o tempo em que os pinheiros vão tombando em todos os lugares. As crianças da aldeia vão fazer guerra para conquistar alguns.
São 6:09 da manhã e escutaremos o riacho do passado rugir. Enquanto isso o padre Lee prepara o sermão a ser proferido aos mansos fiéis na próxima semana.
Ontem encontrei vovó pra baixo das lojas e percebi que ela está muito bem para uma senhora de 84 anos. Ao me ver ela perguntou de novo se algum dia vou consertar seu celeiro. Pobre velha garota, que precisa de uma mão para ajudar a manter as coisas na fazenda.
O conforto desse meu lugar bom e velho jaze nos meus ossos, e é o som mais doce que meus ouvidos jamais conheceram. Nada além de um sentimento deveras antiquado e totalmente maduro. O conforto do meu lugar é como carona em caminhão voltando para casa.
Um pouco abaixo do poço eles tem agora uma nova máquina. O capataz disse que ela faz cortes por quinze homens. Tudo bem, mas isso não é bem algo tão natural, diria o velho Clay. Vocês verão que ele é uma silhueta de um forte cavalo até o dia de sua morte.
Agora vejo o velho e gordo ganso voando entre os galhos. Ouriços são feitos de barros e estão entre os tijolos. Escuto daqui o ranger da cadeira de balanço na varanda. E por toda a extensão do vale caminha o pastor com sua tocha em punho.
São flashes de uma vida confortável, ociosa e interiorana de calmaria.

Texto baseado na canção "Country Comfort" de Elton John,

terça-feira, 17 de setembro de 2013

As janelas

Por detrás das janelas sempre há vida olhando pra vidas ou para o nada. Este era um trecho bem interessante que tinha lido em um livro emprestado na biblioteca. E onde toda rotina como de qualquer pessoa convencional começa, em uma manhã.
Desperta os tiques do relógio velho que encerra o sono leve, e abre-se os olhos para um inquestionável inédito dia. Senta, reclama, e abre a janela. Nem sol, nem perspectiva de ver água jorrar das nuvens. Se apronta e se vai. Na sala do trabalho já sabe que o sol incomoda quando reflete nas vidraças do edifício da frente, e deixa a fresta de sempre para entrar o ar e os sons esbaforidos dos carros que se engolem lá fora.
Restaurante, meio dia, fome. Janelas de madeira (que sonha ter em casa um dia) ficam abertas para poder ver as pessoas passando para lá e para cá. Bloco na mesa, mancha de molho do macarrão que caiu sobre o lembrete de ter que devolver o livro ainda hoje.
Volta e trabalha, para e se despede. Vai ao banheiro onde um projeto de janela se dispõe no alto, e do outro lado o fosso do elevador. Depois do medo, vai.
Taxi. Janelas fechadas, começa a chover.
Na biblioteca sempre promete devolver e não pegar outro livro pois precisa estudar para as provas do bimestre. Sempre falha. No corredor de contos estrangeiros tomba a cabeça para olhar os títulos. Pega um, abre, e lê:
" Foi quando Henry se despediu de verdade, ao olhar pelos vidros traseiros do carro enquanto sua mãe acenava triste e orgulhosa da janela, sabendo que o filho agora veria o mundo."
Olhou para a janela enorme que findava o corredor e viu a chuva cair e as gotas correrem pelo vidro. As imagens distorcidas pela água lhe fascinavam.
Levou o livro.
Resolveu faltar as aulas para ler.
Em casa chegou e se entregou ao sofá, lendo sobre o menino que desertava da humildade de sua família rumo aos desatinos do mundo. Leu, releu e adormeceu. Depois acordou, preparou chá e foi para o quarto telefonar. Ninguém atendeu.
Abre a janela sobre a cama, sente o vento frio cortar e fecha de novo.
De repente cerrou os olhos e abriu novamente. Os olhos são as nossas janelas, pensou.
E com todas janelas fechadas se desligou, com as cortinas negras escondendo por horas o que vai nos obrigar a ver ao nascer do sol.

domingo, 15 de setembro de 2013

Os sinos

Quando começa a semana é sempre assim. Tchau pai e tchau mãe, lancheira e manhã fresquinha. Sobe morro de pedra e vai no pomar, na mesma árvore, antes que alguém veja. A amiga já espera ali, pra contar que o namorado da irmã é feio, que os pais brigaram e que o avô não tá legal. Na árvore de trás dois meninos dão risada das conversas rosas das meninas enquanto trocam as figurinhas repetidas.
Hora de entrar. Vai marchando, correndo, andando e tropeçando. As monitoras vigiam em vão o doce e tenso entrar das crianças, ao som de shhhius e silêeencios.
Todos para o pátio, já sabem porquê.
Formando fila já, um braço de distância do colega da frente e postura. A postura é muito importante.
Todos se calam (ainda falando) enquanto a diretora discursa pra ninguém ouvir. O mesmo tédio das palavras da madame está nos ânimos dos pequenos, aquela vontade de ver tudo passar rápido e ir pra casa ver desenho e brincar.
Hora do hino.
Cada um com seu papel na mão, menos os mais espertos que já decoraram, os orgulhos da diretora.

"Que a pátria siga viva...
A esperança nas montanhas...
De lutar por nossa gente...
Ouvimos os tambores soarem..."

Eram tantos hinos que todos se misturavam. Tinha hino pra tudo. Pra pátria, pra bandeira, pros índios, pros marinheiros. Acaba o momento que era pra ser solene e volta a rotina da inquietude.
Não se pode controlar totalmente quem não tem total controle, que se guia por instintos limpos e vontades acima do esperado socialmente. Podem ter a melhor educação no lar, mas não se transformam em outra coisa a não ser na mesma criança que tanto é feliz e deseja na mesma proporção deixar de ser. Depois nos lembramos dos hinos e papos quando o que mais temos é saudade de ser o que já fomos.
Os sinos? Ainda posso escutá-los aqui me avisando que tinha que ir pra casa, e que a vida passa.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A laranja e o morro

Quando todas emoções da noite já haviam prometido uma trégua eis que surge a tentação no caminho, a vontade iminente, o impulso necessário a toda forma de sedentarismo. A ladeira já facilita o trajeto, basta flexionar os cansados joelhos e desviar das calçadas inexistentes. 
Depois da quadra da rua que passa o caminhão do lixo, árvores frutíferas se estabelecem no acostamento, e como manda a natureza, depois de maduras seus frutos caem como gotas de tinta no asfalto cinza. Um, dois, sete passos e lá está ela. Uma laranja colocada como pelota em marca do penal. O andante se aproxima e apenas curte o saltitar da fruta percorrendo a via sem carros.
Ela insiste em caminhar mais alguns metros e se exibe novamente, quase pedindo. O chute desloca a fruta como uma pedra rolando de um penhasco, e perde-se de vista, talvez tenha passeado para o outro lado da pista, onde não me arriscaria. Mas não. 
No único carro estacionado ela namora de longe o tênis sujo que se aproxima, flexiona os gomos, segura as sementes e gol. Desta vez foi mais forte, e ela rola no centro da rua, sem vontade de parar. 
Como já estava sem uso nesta vida, sem compor nenhuma salada ou participar de um suco de frutas cítricas, viu seu destino ser mudado algumas vezes, e na sua doce (ou azeda) inconsciência de ser colheita da terra, alimento inerte, pôde fazer o que muitos que respiram e pensam não podem: sair do lugar, nem que fosse a pontapés. Saiu de seu fim da linha pra morrer podre como todas, porém longe, pois nem laranja no chão tem dia seguinte cravado.