segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Borboletas e pedras

Desde o sempre existem as pedras. Elas nunca variaram muito o significado para nós. São simples, enormes ou ínfimas, causam desgraças e dores. Desde o sempre as pedras fazem parte do ordinário viver, das mais incongruentes experiências, não dependem de nada, só dos ambientes que vivem e da gravidade, seja em qualquer sentido.
Hoje vi uma borboleta que tombou e se dissimulou, perdeu o equilíbrio e partiu sem dar explicações. Desviou dos muros de chapisco, dos raios solares que queimam e das rosas que espetam. Correu das maiores ameaças e morreu pelo soprar do vento. Se esqueceu de voar e foi levada, sem rumo nem autoridade ao destino imprevisível que abrange a todos que ficam a mercê da brisa que antecede a tempestade.
Foi ao buscar o livro na estante da sala que pude ver o temporal. A árvore se dobrava em reverência ao poder exalado daquela manifestação. Sinais por todo o entardecer. Folhas que alçavam voos incríveis, pingos de chuva gelada que ultrapassavam os bloqueios que insistimos em construir. Fiz de bobo quando um raio riscou minha visão, e terminou como grande batucada de deuses insatisfeitos com os rumos da filosofia.
Naquela tarde eu entendia o mundo, e o mundo me insultava sem entender. Corri para tirar as roupas que secas, molhavam. Já não chovia mas quis enfim terminar um objetivo. Deixei fora de casa os sapatos velhos, com a sola exposta e o cadarço empoeirado.
Entre as pedras que rolavam, as borboletas que sumiam e a chuva que castigava fiquei lembrando de quando tudo isso era sonho, e de quando eu via as luzes acesas na madrugada, pensando em falar qualquer besteira para o papel mudo. Me arrependi das falas que decorei e fui esquentar o leite e deixar que a madrugada, úmida e confusa, me observasse.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Dialogando sobre o sono com Montaigne

*em itálico as passagens do filósofo francês retiradas de seus Ensaios.

Mistura de quietude e movimento. Paramos, não vemos e ignoramos. A mente funciona como uma indústria noturna, com nossas linhas de produção cerebral a pleno vapor. É isso, ambiguidade muda, silêncio onde nada para.
Por vezes os grandes personagens em seus mais importantes empreendimentos se conservam tão serenos que nem sequer perdem o sono.
Um estágio altamente necessário ao ser que insiste pensar. Coloca-se fatigado pelo estado de cansaço do plano físico e de alma, envolto de mistérios de por onde vamos e como retornamos, talvez sem tantos mistérios para os estudiosos, mas pouco se pode saber do caminho individual do ser.
No dia da batalha que travou contra Dario, Alexandre, o Grande, dormiu tão profundamente e até já manhã alta, que, em sendo quase hora de combater. Parmênion foi obrigado a entrar-lhe no quarto a fim de acordá-lo.
As tribulações que nos mantém acesos se tornam um fardo muito mais pesado quando desaliviado pela ausência do desligamento nosso. É essencial quer deixemos de existir conscientemente por certo período.
Cabe aos médicos dizer-nos se o sono é tão necessário ao homem que sua vida dele dependa. Em apoio dessa asserção temos em Roma o caso de Perseu, rei da Macedônia, que fizeram morrer impedindo-o de dormir.
Pode-se aferir simbolicamente que desde que o universo assim existe o sono é típico das horas de trevas, sem luz, sem visão. O escuro do ambiente que cerca-nos se equivale ao escuro total do fechamento das pálpebras, cansadas de enxergar e ávidas pelo cessar momentâneo da mente. Mas nunca estamos de fato na completa escuridão.
Plínio relata casos de pessoas que viveram durante muito tempo sem dormir. Heródoto fala de povos que dormem a metade do ano e velam os outros seis meses. E os biógrafos de Epimênides contam que esse sábio dormiu durante cinquenta e sete anos seguidos.
Melhor do que dormir é estar plenamente convicto de suas ações e bêbedo pelo sono que consome.


sábado, 12 de outubro de 2013

Nós precisamos disto?

Uzupis, 1959. Antanas Sutkus


“O dia a dia é algo entediante [...] é universal, ele não se sujeita a ninguém [...] Frequentemente, o homem moderno não tem tempo para o dia a dia. Quando vemos a neve pela manhã, praguejamo-la por causar dificuldades nas estradas, mas nos esquecemos que a neve é branca e macia [...] Os supermercados tomaram os lugares das igrejas e dos museus. O lema principal é ‘trabalhar, comprar e morrer!’. Tal dia a dia também existe, e este é o modo injustiçado de vida. O dia a dia se perdeu entre chamadas telefônicas, reuniões importantes, informação eletrônica e escândalos políticos. Eu preciso disto?”.


Essa frase é do fotógrafo lituano Antanas Sutkus. Tive o privilégio de ir ver uma exposição de suas fotos no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, e além de imagens belíssimas essa frase me chamou bastante atenção. Na verdade ela não saiu da minha mente por muito tempo, quem sabe até os dias de hoje.
Tenho absoluta certeza de que não vou conseguir expressar exatamente o que desejo, mas, tentarei assim mesmo.
O que nos regula hoje são horários, prazos. Horário de ônibus, de metrô. Temos tempo estipulado para almoço, com hora para a saída e para o retorno, e você precisa ir esteja ou não com fome e retornar, esteja ou não disposto.
Prédios em ruínas, casas desabando, lugares cheios de coisas pra nos dizer são colocados ao chão para que alguma nova obra seja erguida, em prol da modernidade. Prédios com 300 apartamentos, guardando 300 famílias em gaiolas em terrenos onde antes jazia uma casa grande, de quintal denso, e crianças brincavam de floresta mágica.
A vida realmente se resume em trabalhar, comprar e morrer. Quando você se desvia desse rumo é chamado de louco, de inconsequente. Viver sem computador do ano, sem telefone que é também GPS, leitor de livro, reprodutor de vídeo hoje é um risco. Nossos pais sobreviveram sem isso, e foram felizes, muitos se mantém saudáveis virando a cara para tanta coisa necessariamente inútil.
Nos faz falta a simplicidade de um caderno de receitas todo escrito a mão, de recados na geladeira, de carregar um livro pesado pra onde formos, de crianças modelando massinhas ao invés de mouses.
Estamos todos cansados de tanta informação. Não existe necessidade de sabermos tudo. A felicidade se condiciona a detalhes tão menores do que saber tanto a todo tempo. Parece que nos esquecemos de que essa vida que temos não é infinita.
Que a estabilidade financeira seja apenas um padrão onde possamos viver nesse mundo tão predador. Que conforto signifique coração livre e sucesso seja sinônimo de fazer pessoas a nossa volta felizes. Que se propague o amor e a bondade.




quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Vida e vida de um vivo funcional

"Gostaria de conhecer a cidade." - disse a prima Evelin, quando se aconchegou no sofá do 15° andar do Kentucky Building. Charles, que não tinha vontade alguma de se deslocar pela cansativa metrópole, tentou convencer a esposa Anna a cumprir o pedido. Em vão, pois ela já havia marcado uma reunião com dois representantes de uma franquia de relógios. Sem argumento, vestiu uma blusa e colocou os sapatos antes de indicar o caminho do elevador a Evelin que os levaria até o estacionamento.
Mal haviam deixado a garagem do condomínio quando Charles questionou sobre onde ela gostaria de ir. De surpresa, a moça pediu que ele parasse o carro imediatamente para que pudesse conhecer uma adega que viu pela janela. Dentro do local, que tinha cheiro de madeira velha, ela expressou vontade de beber uma taça de vinho. Sentaram-se nos banquinhos apertados e brilhantes do verniz semi seco e seu pedido chegaria em instantes. Uma taça de moscatel grego bem doce acompanhada de fatias de laranja e pedaços de cravos espalhados pelo pequeno prato. Quinze minutos se passaram até o último gole. Voltaram ao carro.
Enquanto Charles explicava que seus dias de folga eram raros e que geralmente os passava dormindo, Evelin, que não ouvia de verdade o que ele dizia, pediu para descer em frente a uma igreja velha. A porta altíssima branca e danificada pelo tempo estava entreaberta. O homem aguardou no carro enquanto a jovem desbravou o templo. Lá dentro, ficara sabendo que se tratava de uma construção de 1810 e ficou impressionada com a beleza da arquitetura. Quando questionou o primo sobre as vezes que ele já estivera ali, ouviu um "nunca" prosseguido de uma risada sarcástica.
Na parte velha do centro, desceram do carro e se puseram a andar, com diferenças notáveis no entusiasmo. Evelin entrou em uma loja de doces e comprou uma maça do amor coberta de confeitos coloridos. Sua boca parecia um arco-íris de tão suja pelos corantes divertidos.
Comprou um quadro de um viajante. Uma paisagem rural, crianças brincando e ao fundo um mundo todo em verde-escuro. Na livraria pediu postais da cidade para saber onde mais deveria ir. 
Enquanto seus olhos giravam pela calçada á procura de novidades, Charles olhava o relógio apreensivo, sem hora marcada para nada. Por um instante apenas parou e se perguntou porque não conhecia nada daquelas coisas que tinha visto naquela tarde. Era mesmo porque ele não queria. Nem teve tempo de raciocinar sobre sua vida, pois Evelin já o havia convocado para um museu e uma loja de antiguidades. 
Ela estava viva. Ele também, apesar de ninguém, nem sequer ele mesmo notar.