quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Atravessando a rua em um dia frio e sem luz





Como em um sonho

Se agarre ao que puder. Braços, cabelos.
Então atravesse a rua, cuidado com os faróis.

Se for lento, terá de correr
Então corra
Caia na neve se precisar, você não irá se machucar

Agora basta se sentar na calçada, se proteja do vento forte
Saiu só com esta blusa?
Agora vai congelar.

Não se esqueça de encostar no muro da casa verde.
Você não vai querer ser atropelado por cães de rua

Espere a tarde terminar e faça o que quiser
Fim das instruções.

domingo, 31 de agosto de 2014

As agonias

Guardo em uma gaveta
Notas e canções
Desenhos de corações
Que fiz enquanto vivo

Sou tudo que jogo no papel
As linhas, tortas e certas
As arestas sem ponta
Os desvios que levam ao destino

Vago nos becos molhados
Madrugadas claras de lua
A fome ao sono se mistura
Tudo vem me dizer que a noite existe

Apaixonado por janelas
Abro todas para ver
Os muros pichados de rebeldia
As agonias, as agonias

Deixo o caderno próximo do meu sentido
Navego sempre sem âncora, marujo fugitivo
Quero o que não posso e carrego a satisfação
Sou o que devo ser na hora que a vida diz amém


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cada estrela um olhar


As férias na casa dos tios terminaram. Hora de voltar para a casa que outrora tanto causava excitação e alegria. Onde as brincadeiras eram intermináveis, onde o carpete da sala era o quintal mágico, as escadas se transformavam em montanhas e a garagem uma caverna escura e assustadora para se esconder.
Hoje a casa é uma casa, tem janelas, portão, porta e porão. Não tem sorrisos nem diversão. E o papai não ficava feliz em deixar todas as noites a menina de sua vida sozinha, solitária, única. O trabalho na usina foi a melhor chance em anos, e era preciso um sacrifício em nome de uma vida mais digna.
Na primeira noite do retorno, papai fez seus ovos mexidos, espremeu as limas e dobrou duas vezes o guardanapo. Agora comia sempre na sala, com a TV ligada, pois tudo andava muito quieto por lá.
Já de roupa trocada, fez sua garrafa enorme de café, jogou as chaves na bolsa e subiu rapidamente até o quarto de Lazy. Encontrou a menina com o quarto quase escuro, apenas com a fraca luz do abajur acesa. Perguntou a ela se estava bem. Ouviu o silêncio.
De forma carinhosa e cuidadosa, se aproximou e pediu a ela um favor. Que fosse até a janela durante um tempo e olhasse as estrelas, e que imaginasse todas como espelhos, que refletiam o mundo cá embaixo. Disse a Lazy que, assim como ela podia ver as estrelas, pessoas do mundo todo também podiam. Se ela pensasse nisso conseguiria ver em cada estrela um olhar para o céu, e dessa forma não poderia estar só. A menina seguiu contrariada, ganhou um beijo do pai e contou os passos e instantes até se encontrar de vez sozinha na casa.


Sem qualquer expectativa, levantou da cama e foi até a janela. Olhou para o céu e viu diversas estrelas, centenas, milhões e incontáveis. Agradeceu que o pai não pediu a ela que as contasse, como fazia anos atrás, pois isso havia custado a ela uma noite toda de sono, o fracasso da missão além de uma grande dor de cabeça.
Mal percebeu quando não conseguia mais parar de olhar para o céu, e tentar pensar em toda essa gente fazendo a mesma coisa. E se elas fossem espelhos? Conseguiu imaginar várias crianças, adultos, cidades, rios escuros e animais. Se perdeu no meio de tantas companhias. Se perdeu tanto que dormiu, na poltrona que colocou sob a janela para continuar a olhar para todos que, junto com ela, deixavam aquela noite menos solitária e bem mais estrelada.
No dia seguinte levantou mais feliz e foi brincar no quintal, e desde então nunca mais se sentiu abandonada nas noites, mesmo que fosse a única estrela no mundo.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Eu moro no fundo do rio

1973.
O piquenique está quase chegando ao fim. Papai desmonta a barraca enquanto mamãe coloca o resto da comida dentro das cestas. Minha irmã, toda cheia de roupas está sentada na grama fria penteando o cabelo de sua boneca Sue Marrie.
Perguntei ao papai se eu podia catar algumas pedrinhas na trilha ao lado do carro. Me olhou nos olhos já me fazendo entender: "Vá e tome cuidado."
Adorava ir acampar no vale, pois eu sempre voltava pra casa com pedrinhas diferentes, algumas em tons de azul, outras róseas, outras quase negras. As que eu não considerava dignas de morar no vidro de maionese que repousava na minha cômoda eu simplesmente jogava no rio, bem de longe, esperando o barulho da aterrissagem.
O rio ao fundo sempre me assustava, tão escondido entre as árvores, quase um segredo da natureza. Eu nunca me aproximava dele, até porque levaria uma merecida bronca dos meus pais.
Caminhando, olhando para baixo a procura das pedrinhas, nem notei que havia me aproximado demais do rio, mas nada que me causasse algum risco. E quando fiz a menção do recuo, vi nitidamente a figura de um garoto recostado a uma árvore, com seu tronco já banhado pelo leito do rio.
Com cuidado me aproximei esperando que ele me visse. Ele viu, e caminhou em minha direção, em atitude simpática. Chegou perto de mim, sorriu e disse:
- Você ainda não jogou as pedras no rio hoje.
- Como você sabe que eu faço isso?
- Eu moro no fundo do rio.
A casa do menino
Fiquei um pouco assustado com o que ele disse, pois sei que ninguém poderia viver no fundo de um rio. Além do mais estava muito frio, e a água devia estar congelante.
- Por que você vive lá?
- É onde moro, onde sempre estou, olhando os visitantes e os carros que passam pela estrada.
- E desde quando você vive lá?
- Acredito que desde 1907.
Foi quando me lembrei de uma conversa com o padre Iwo, que me disse um dia, depois da missa, que eu não devia me preocupar em entender tudo.
- Você gosta de viver lá?
- Sim, mas de vez em quando posso sair e ver as coisas aqui fora. Não tenho do que reclamar.
- Bom, me desculpe por jogar as pedras na sua casa.
- Não tenho nada a desculpar. Na verdade, eu guardo todas em uma garrafa de leite que jogaram no rio a uns anos atrás.
Sorrimos um para o outro. Eu voltei para o carro, ele voltou para o rio.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Diálogo despedaçado


- Sabe por acaso porque estou aqui?
-Sim, você foi encontrada aos pedaços. A ambulância te trouxe pra cá.
- Certo, e onde está o resto de mim?
- Ainda estão procurando, as autoridades estão cuidando disso.
- E você acha que terão sucesso?
- Segundo minha experiência, não.
- Isso é uma coisa muito triste. Sou só uma parte agora.
- Mas quem disse que pra ser você é preciso ser inteiro?
-Li em um livro.
- Jogue ele fora. Parta-o em pedaços.
- Agora você está zoando com a minha cara.
- Mentira. Fala isso só porque está em pedaços.
- Exato. Por acaso não tens coração?
- Tive mas ficou na minha última cidade.
- E como sobrevive sem?
- Me acostumei a olhar as coisas por olhar. Não sinto nada além de frio.
- Eu pensava que eu fosse triste, mas vejo que você está pior.
- Como pode saber disso?
- Pela tristeza do que você contou. Não tens coração e isso é sofrível.
- Encontro todos os dias gente sem cérebro, sem caráter e sem olhos e estão todos caminhando por aí. Até sorriem, se quer saber.
- E quantos sem coração?
- Ora, muitos, mas nenhum em situação tão grave quanto a sua.
- Eu vou morrer?
- Não.
- Então porque julga meu caso dessa forma?
- Pois pelo seu lamento, tudo o que lhe sobrou foi um coração.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Sóis chuvas & Romas

Eu não nasci em Roma. Tenho documentos que comprovam. Dizem que a morte é a única certeza da vida. Mentira. Eu não nasci em Roma. É bom começar o dia assim, quebrando uma verdade inquestionável. Mas, eu nem iria escrever sobre isso. Mas saiu.
Pequenos passeios nas tardes de meados de semana. Sol quente, ar fervente. Carros se atropelam e se batem pra decidir quem é mais rápido,
melhor e mais macho. Vendedores de caldo de cana, com vários sabores. Meu preferido é o de limão. As barracas de churros ainda não abriram. Se estivesse frio estariam abertas com o doce inserido no centro da crosta crocante. Sorveterias servem sorvetes, daqueles gelados. Pessoas quase nuas e com banhos vencidos fazem filas com suas casquinhas. Águas engarrafadas escoam como bala de troco. Agora os mercados tiram os bebedouros de suas entradas pra poderem vender as garrafinhas no verão. Aumentam as vendas e a insatisfação do cliente fiel. "Hey, havia um bebedouro aqui". - "O gerente mandou tirar, dona". Se fosse inverno, sorveterias teriam menos sorvetes e mais fondues, caldos, sopas. O que está no céu pode dizer o que você quer comer.
Quando chove, a rua fica sem dono. Ninguém quer se exibir, se ostentar. Todo mundo acaba ficando molhado e a propaganda não é a melhor. Pontos de ônibus e marquises furadas se tornam o que existe de mais confortável perante a água que desaba.  Os carros seguem interrompendo enxurradas e molhando pedestres que desafiam o asfalto cheio de corrimentos pluviais e pneus escorregadios. É quase uma roleta russa onde ou você molha ou morre. Quem não se importa são os cachorros, que naturalmente cheiram cachorro molhado. Estão em casa.
Mas é sério quando eu digo que não nasci em Roma. Nasci nas Minas, onde não tem coliseu mas tem quiabo com frango. Não tem piazzas mas tem praça bonita com coreto. Pipoqueiro e bancos pra sentar. Não tem as luzes de Roma, os bares, pizzas e aquele ar milenar que adormece na cidade eterna. Cada lugar tem sua beleza e sua identidade que passa a ser nossa quando vemos e nos apaixonamos. Não sei até que ponto carregamos conosco o que somos. Talvez sempre, talvez nunca. Quem nasce em Estocolmo e vai embora no dia seguinte pra Colômbia só é sueco no papel. Vai carregar consigo um nome estrangeiro e uma cultura que vive sem ter nascido no seu centro. Somos reflexos de onde somos e de nossa rotina.
Seja no calor, no frio ou em Roma. Seja onde for.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Maratona literária

13 a 19 de janeiro.

1) Vozes anoitecidas (Mia Couto)
2) O clube do livro do fim da vida (Will Schwalbe)
3) Cartas na rua (Bukowski)
4) Satori em Paris (Kerouac)
5) As cidades invisíveis (Italo Calvino)

promovido pelo blog:
www.cafecomblablabla.com.br

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A virada

As dezenas dos dias não deixaram de contar. Foram passando como os ponteiros lentos de um relógio quebrado. Mesmo assim, voaram como o tempo faz. Vieram as festas, as comemorações. Livros, presunto defumado, sobremesa festiva e reunião familiar. O contexto demarcado não se inverte, e nem deve.
Fim de ano é o período que chega rápido e passa rápido. Os presentes a comprar, as metas a cumprir antes da contagem regressiva que tudo encerra. Ao meio caminho nos desligamos das migalhas dos dias e nos concentramos nos quase quatrocentos por vir. Abdicamos dos fins de dezembro em nome do janeiro vindouro.
É tempo de pensar se o ano valeu a pena, se desperdiçamos tudo, se fizemos algo realmente bom. Anotarmos no bloco mental o que deu errado e tentar realinhar os campos magnéticos e tentar fazer dar certo agora que tudo zera. Zera em partes.
O primeiro de janeiro é como uma segunda-feira mais importante. Ali começam as dietas, os compromissos de ser uma pessoa melhor, passa a valer a conta da academia. Nos enchemos de ânimo de uma terça para uma quarta, mesmo tendo centenas de terças tão comuns e perdidas por vir. Somos condicionados a sermos melhores porque tudo, de algum modo, começa de novo.
A agenda foi comprada. Esse ano não vou esquecer nenhum aniversário. Vou colocar as contas ali, anotar os telefones de pessoas importantes que preciso manter contato antes que seja tarde. Vou tirar carteira, estudar direito para um concurso, ler mais, assistir filmes, ser pai/filho/marido melhor.
Não deixamos de ser o que somos só porque a terra finalizou um ciclo. Somos os mesmos. A diferença é que, assim como uma segunda-feira qualquer, o dia que nasce é a mesma oportunidade de realmente mudar alguma coisa. Não precisamos nos transformar no primeiro de janeiro. Precisamos nos transformar aos poucos, sem data prevista, pois a vida é repartida burocraticamente em anos mas não deixa de ser a mesma. Se eu for um cretino em 2014 e resolver ser alguém de caráter no ano seguinte, em 2015 vão continuar a se lembrar que sou um cretino.
Mas, nada contra quem resolva ser melhor depois de 31 de dezembro. Não tem data certa pra isso, o mais importante é que aconteça, seja quando for. Pois o minuto seguinte já é oportunidade suficiente para sermos melhores.