domingo, 1 de março de 2015

Páginas úmidas

As botas cheias de água fazem barulho engraçado. Vai pegar gripe, avisaram. Dane-se, na mente respondeu. E agradeceu.
Os calos ainda doem mas fazem parte do que é. Mancar se tornou exercício diário, sem esse medíocre costume o mundo pareceria igual a antes.
O livro debaixo do braço está molhado, não todo, claro, as pontas e algumas páginas salpicadas de pingos de chuva e café derramado.
O caminho para a gráfica é nauseante demais para andar olhando para frente, encarando as faces tão isoladas e únicas dos caminhantes. Dobra então o pescoço e se desvia de buracos e galhos. Das poças já não se dá o trabalho.
Adora barulho de pratos, daqueles agudos, batidos e rebatidos, colocados um acima do outro, sujos, limpos, ensaboados. Não se importa com uma marca de batom ou café seco na sua xícara. Acha até que ninguém deveria se importar.
A professora do lado perguntou se ele não se importa em molhar o livro. Ele responde que não gosta, mas não tem escolha. Se ele precisa ler, ele precisa. É como respirar. Um caminhão sem filtros que passa pintando a rua de preto não vai impedí-lo de puxar o ar. Está acima dele, do que tem direito a escolher. As páginas molham e podem secar. A vontade que marcha junto ao sangue pode lhe matar, ou ao menos ele acredita nisso.
Do que adianta se desviar do que é no amanhecer do dia se você não passa do que é?
Melhor um livro de páginas ruídas do que novo feito vinho ruim.
Melhor um homem que se molha e se estraga do que um limpo, uma página em branco sem nada para contar.

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