sexta-feira, 18 de abril de 2014

Eu moro no fundo do rio

1973.
O piquenique está quase chegando ao fim. Papai desmonta a barraca enquanto mamãe coloca o resto da comida dentro das cestas. Minha irmã, toda cheia de roupas está sentada na grama fria penteando o cabelo de sua boneca Sue Marrie.
Perguntei ao papai se eu podia catar algumas pedrinhas na trilha ao lado do carro. Me olhou nos olhos já me fazendo entender: "Vá e tome cuidado."
Adorava ir acampar no vale, pois eu sempre voltava pra casa com pedrinhas diferentes, algumas em tons de azul, outras róseas, outras quase negras. As que eu não considerava dignas de morar no vidro de maionese que repousava na minha cômoda eu simplesmente jogava no rio, bem de longe, esperando o barulho da aterrissagem.
O rio ao fundo sempre me assustava, tão escondido entre as árvores, quase um segredo da natureza. Eu nunca me aproximava dele, até porque levaria uma merecida bronca dos meus pais.
Caminhando, olhando para baixo a procura das pedrinhas, nem notei que havia me aproximado demais do rio, mas nada que me causasse algum risco. E quando fiz a menção do recuo, vi nitidamente a figura de um garoto recostado a uma árvore, com seu tronco já banhado pelo leito do rio.
Com cuidado me aproximei esperando que ele me visse. Ele viu, e caminhou em minha direção, em atitude simpática. Chegou perto de mim, sorriu e disse:
- Você ainda não jogou as pedras no rio hoje.
- Como você sabe que eu faço isso?
- Eu moro no fundo do rio.
A casa do menino
Fiquei um pouco assustado com o que ele disse, pois sei que ninguém poderia viver no fundo de um rio. Além do mais estava muito frio, e a água devia estar congelante.
- Por que você vive lá?
- É onde moro, onde sempre estou, olhando os visitantes e os carros que passam pela estrada.
- E desde quando você vive lá?
- Acredito que desde 1907.
Foi quando me lembrei de uma conversa com o padre Iwo, que me disse um dia, depois da missa, que eu não devia me preocupar em entender tudo.
- Você gosta de viver lá?
- Sim, mas de vez em quando posso sair e ver as coisas aqui fora. Não tenho do que reclamar.
- Bom, me desculpe por jogar as pedras na sua casa.
- Não tenho nada a desculpar. Na verdade, eu guardo todas em uma garrafa de leite que jogaram no rio a uns anos atrás.
Sorrimos um para o outro. Eu voltei para o carro, ele voltou para o rio.

3 comentários:

Felipe Celline disse...

É bom encontrar um blog ativo!

Muito gostoso e fluído seu conto. Gostei.

Majucyara Vasconcelos Santos disse...

Que lúdico, amei.

@majucyara
http://mvsantos.blogspot.com

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.